Conto do nosso fim
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- será triste...
Ele não entendeu o que a sua avó havia dito. Sentia-se tão cansado daquela vigília que começara há três dias. Estava ficando cada vez mais confuso. Esticou um braço para pegar um copo, depois o outro para pegar a garrafa de café e fez uma careta ao descobrir que o líquido de dentro havia acabado mais uma vez.
Sua avó estava delirando há uns dois dias, a febre não cedia e o médico disse não poder ministrar qualquer medicamento. Talvez, fosse os últimos dias dela, algo relativamente bom para quem passou o último ano imóvel numa cama.
Sua lucidez ia e vinha. A maior parte do tempo dizia coisas sem sentido, lembrava de pessoas, objetos, lugares. Incomodava apenas o fato de tudo ser mentira. Invenção de um mundo em seus delírios.
Ele, por vezes, tentou acreditar que ela estava num mundo perfeito dentro de si, mas sabia, a verdade era outra. Em alguns momentos, ele percebia um olhar pedinte, um gemido de dor, e a tristeza de quem sabe que algo está errado. Por vezes, nos anos que antecederam a progressão excessiva da doença, ele a pegou duas ou três vezes olhando para o nada. Foi assustador ver a avó pela primeira vez olhando para uma televisão sem sinal.
Depois de algum tempo, ela não o reconhecia e, num dos últimos atos de loucura, ela acordava no meio da noite e ficava nua na varanda.
Ela era a única parente viva que ele tinha. A única entidade materna que ele conhecera. Todos os outros estavam mortos. Ele pensava - Essas coisas acontecem com muito mais freqüência nos dias de hoje. Ele olhava para ela, que estava olhando para o teto quando disse:
- O conto do nosso fim!
Ele a olhou intrigado, já tinha ouvido essa frase antes, mas não conseguia lembrar onde. Curioso, se aproximou do leito e chegou bem próximo ao ouvido dela.
- O que vó? – disse com um sorriso no rosto. Quando ele era criança e dormiam juntos, ela quase sempre falava dormindo e ele sempre tentava conversar com ela.
- O conto do nosso fim! - Ela estava com o olhar vidrado, como se enxergasse alguma coisa no teto.
- Quê que tem vó!?
Ele sorriu. Aproximou devagar seu ouvido para tentar ouvir o que ela dizia quando sentiu a pele fria e flácida da boca de sua avó roçar sua orelha. Ele se afastou um pouco. Ela estava olhando para ele.
- Você sabe! Será triste o conto do nosso fim! - A voz, apesar de pausada, saía firme.
- Não vó. Não sei!
Olhou em volta para ver se tinha alguém perto. Tirou o celular do bolso. Faltavam cinco minutos para as duas da manhã. Sua avó continuava a olhá-lo, agora balbuciando muito baixo.
Sem poder ouvir o que ela dizia, ele começou a sentir o embrulho no estomago que precedia o nervosismo, como uma criança que diz “chega” para uma brincadeira na qual sente que podia ter se machucado. Mesmo assim, aproximou seu rosto mais uma vez para entender o que ela dizia e só conseguiu quando seu ouvido já estava a milímetros da boca de sua avó.
- ...do porco do seu pai, a desgraça de sua mãe, o aborto que matou sua irmã, o tiro do seu tio, o câncer do meu marido, sangue no carro. Seu puto, o pão que comes é o que destrói a carne, o inf...
Num pulo ele se afastou da maca, empurrando ambos ao mesmo tempo. Que diabos estava acontecendo? Ainda podia ver a boca se mexendo, balbuciando.
De súbito, sentiu um calafrio percorrer a espinha, – Só posso estar sonhando. - Disse enquanto via sua avó sentando na maca. O mesmo corpo que estava imobilizado com há um ano.
Sua vó era magra, tinha os cabelos completamente brancos, o rosto sempre fora de um cinza pálido.
Estava séria. Ele nunca havia visto sua vó tão séria, chegava a parecer brava sentada na sua frente olhando-o sem qualquer emoção evidente.
Notou que estava paralisado, não por medo, mas como em um sonho sem qualquer controle de si. Aquele ser com o rosto de sua avó desceu lentamente da maca e levou o dedo indicador aos lábios, como se faz quando se pede para alguém não fazer barulho.
Mesmo que quisesse, e ele queria, não se sentia dono de qualquer músculo seu. Estava fincado ao chão enquanto a figura bizarra se aproximava em marcha lenta. A poucos centímetros de seu rosto, parou.
Ela era alta, praticamente da sua altura, percebeu seus olhos que mesmo quando estava acamada vitima do acidente eram negros e vivos, estavam praticamente brancos e sem vida. Lembrava muito os olhos de peixe sua mãe trazia da feira - Estou hipnotizado?- Perguntou a si mesmo, pois era como embarcar numa anestesia geral e ficar acordado. Ele já havia lido sobre isso.
Aquela coisa estava encarando-o. Seu nariz tão próximo a seu rosto que sentia o ar quente da respiração dela, e ele simplesmente sorriu. – estúpido-. Pensou rapidamente. A coisa sorriu de volta e começou a descer.
Por um momento ele pensou que ela iria encolher como Alice, mas percebeu seu engano quando a viu ajoelhar e levar suas mãos ao seu cinto. Era excitante. Estranho e excitante. Sua avó estava ali, começando a fazer algo que ele nunca sonhara na vida que ela poderia fazer, mas como todo instinto primitivo masculino, ele se deixou levar. Ou talvez nem mesmo tivesse escolha, sua moral e pudor saiu do corpo no mesmo instante em que o ato incestuoso terminou em êxtase.
***
Ele acordou com uma enfermeira lhe cutucando o braço dizendo que sua avó morrera enquanto trocavam os lençóis. Ela falava muito rápido e com pressa. Sem causa aparente, ficou claro para ele. E só conseguiu dizer:
- Será triste o conto do nosso fim.
Essa frase ele havia escutado uma única vez.
Era o enterro de sua falecida mãe. Ele deveria ter uns quatro anos quando assistiu sua avó fazer o discurso fúnebre.
Pouco a pouco ele começou a lembrar, o discurso:
-“Senhor das correntes e grilhões, do fogo e da punição, do porco do seu pai, a desgraça de sua mãe, o aborto que matou sua irmã, o tiro do seu tio, o câncer do meu marido. sangue no carro. Seu puto, o pão que comes é o que destrói a carne, o infame perecerá adiante e cruel. Esta mulher morreu por nossas mãos e será triste o conto do nosso fim.”
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